A sina de si mesma, patrimônio e liberdade

Uma resenha de Um Teto Todo Seu, de Virginia Woolf

Julia Filgueiras
5 min readJun 21, 2021

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O que é preciso para que uma mulher escreva ficção? Não somente escrever, o que é preciso para que uma mulher escreva ficção sem que a sua vivência enquanto mulher interfira no texto? Em “Um teto todo seu”, Virginia Woolf afirma que são necessárias 500 libras anuais e um quarto com tranca na porta. Um local em que possa se ausentar das interrupções da vida matrimonial e que possa escrever sem preocupar-se com o julgamento das pessoas à sua volta.

Mais do que privacidade e estabilidade financeira, Woolf fala sobre independência. Para escreverem ficções, as mulheres deveriam ter as mesmas condições que os homens para frequentar instituições de ensino, viajar, contemplar o espaço ao redor. Como um exemplo da disparidade entre os homens e mulheres, a palestrante imagina como seria se a irmã de Shakespeare desejasse ela mesma seguir uma carreira na dramaturgia. Desprezada de tal forma pelos homens que detinham o status no meio artístico, a jovem acabaria obedientemente se casando e engravidando. “Quem pode medir o fogo e a violência do coração do poeta quando capturado e enredado no corpo de uma mulher?” — a menina imaginada pela escritora cometeria suicídio em uma noite de inverno. Virginia, em uma crise de depressão, se suicidou em 28 de março de 1941.

Fica claro, portanto: se não havia tantas autoras mulheres quanto havia homens, não é por uma questão de capacidade, mas de oportunidades. E, mesmo que escrevessem, como poderiam prosperar? Para a autora, os homens precisavam inferiorizar as mulheres para que pudessem se engrandecer. As mulheres seriam como espelhos, dotados do poder de refleti-los com o dobro de seu tamanho natural. “Sem esse poder, a Terra provavelmente ainda seria pântano e selva. As glórias de todas as guerras seriam desconhecidas. (…) Super-homens e Dedos do Destino jamais teriam existido. O czar e o kaiser nunca teriam portado ou perdido coroas. Qualquer que seja seu emprego nas sociedades civilizadas, os espelhos são essenciais a toda ação violenta e heroica.”

Assim, tomadas por ressentimento, as mulheres guardavam o anseio da liberdade no subtexto de sua ficção. As poucas que conseguiram consolidar uma carreira como escritoras mantinham a consciência de seu gênero sempre presente no texto, construindo narrativas que não fluíam livres e desimpedidas como a dos homens. Jamais poderiam expressar seu talento integral e completamente; escreveriam sobre si mesmas quando deveriam escrever sobre seus personagens — diz Woolf.

Só poderiam libertar-se da sina de si mesmas através de uma escrita que se igualasse a dos homens, ultrapassando o estado de consciência do sexo. “É fatal para uma mulher colocar a mínima ênfase em qualquer ressentimento; advogar, mesmo com justiça, qualquer causa; de qualquer modo, falar conscientemente como mulher. E fatal não é uma figura retórica, pois qualquer coisa escrita com essa tendenciosidade consciente está condenada à morte. Deixa de ser fertilizada. Por brilhante e eficaz, poderosa e magistral que se afigure por um ou dois dias, deve fenecer ao cair da noite; não consegue crescer na mente de outrem.”

A escrita masculina seria, portanto, uma escrita universal. Não pelo mesmo motivo que os próprios homens se comportam de tal forma, claro. Mas por poderem se permitir uma visão em que o gênero não é um entrave na escrita, por poderem desempenhar uma redação que ao mesmo tempo se neutraliza e se totaliza pela androginia. Pois, para ter o sentimento de que o escritor está comunicando sua experiência com perfeita integridade, é preciso que sua mente opere de forma femininamente masculina ou masculinamente feminina, conforme a autora. Por esse motivo a escrita dos homens tenderia a ser universal, livre, fluída. A escrita feminina, por sua vez, seria descontínua pelo seu caráter confessional.

A não ser que arranjassem as 500 libras anuais e um quarto para si. Então conquistariam o poder de contemplar e pensar por si mesmas. Virginia diz: “A liberdade intelectual depende das coisas materiais. A poesia depende da liberdade intelectual. E as mulheres sempre foram pobres, não apenas nos últimos duzentos anos, mas desde o começo dos tempos.”

E como poderiam enriquecer? Com o desenvolvimento do capitalismo, a mulher passou a ser cobiçada também como fatia do mercado consumidor. Assim, lhe foi concedido um espaço nos postos de trabalho. É claro, com salários inferiores. Muito mais facilmente, a mulher poderia conquistar suas 500 libras anuais através de uma boa herança. Ou, ainda, com muita sorte, poderia contar com a boa vontade de seu marido para, apesar de casada, ter algum dizer sobre o financeiro da casa. Eventualmente, conquistaria um escritório ao lado do quarto dos filhos.

Dentro dessa perspectiva, não haveria outra forma de relação com o mundo em que seria possível a escrita ficcional, a não ser na adequação ao capitalismo. É uma análise da relação mulheres-ficção que não se propõe a planejar outras possibilidades de conjuntura socioeconômica, mas pensar formas de conquistar um espaço merecido dentro da mesma. Assim como a realidade, é uma lógica excludente. Hoje, talvez, outros meios de adaptação fossem levados em consideração. Narrativas escritas a partir da identidade têm engajado muitos leitores e, de certa forma, a internet tem concedido um espaço para quem desejar partilhá-las. Mas é justo continuar afirmando que as 500 libras e o teto todo seu ainda ajudam — e muito.

Em todo o caso, escrever procurando apagar as marcas de seu gênero — ou qualquer marca social — é liberdade intelectual? De uma forma, sim. Porque a escrita pode transcender as questões que a aprisionam enquanto mulher. De outra, não. Porque isso é assumir que é impossível produzir ficção potente que perdure na História se apoderando, justamente, das questões que a aprisionam enquanto mulher. E me parece que a literatura “confessional” consegue sim crescer na mente de outrem. Resta saber se há espaço para as mulheres que de fato não desejam escrever sobre a sua identidade. Pode uma escritora penetrar o universo masculino e abandonar a noção inconsciente de gênero em sua escrita?

É uma das questões que reverberam até hoje da sala de palestras de Cambridge onde, em 1928, a autora apresentou seus artigos. O ensaio toma outros significados à medida em que o feminismo de Woolf se encontra com as demais desigualdades do mundo, redimensionando as noções de liberdade propostas no texto. Vale tomá-lo como ponto de partida para a reflexão, contextualizando-o na elite inglesa da qual se originou, e adaptando suas ideias para as necessidades e padrões atuais.

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