A difícil e necessária arte nas ruas

Apesar das dificuldades, a arte ainda ocupa os espaços públicos durante pandemia

Julia Filgueiras
9 min readJun 21, 2021

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Depois de perder seu emprego na empresa de telemarketing onde trabalhava, a cantora de nome artístico Alice K. voltou a se apresentar nos trens da Supervia no início de 2020. Até março, seu trabalho ali era tranquilo, mas depois da pandemia ficou “muito difícil, realmente desesperador”. Alice de Oliveira, moradora de Guadalupe, de 25 anos, recebeu as parcelas de R$1.200 do auxílio emergencial para mães solteiras. Manteve-se por quase cinco meses sem trabalhar, até não poder mais. Quando voltou aos vagões, viu muitos olhares tortos e julgamento: os passageiros não entendiam o que ela estava fazendo cantando no trem, mesmo com todas as recomendações de ficar em casa para conter o avanço da pandemia. “É que muita gente não lembra que se a gente não for trabalhar, morre de fome.”

A experiência da cantora é um exemplo das muitas dificuldades vividas pelos artistas de rua na pandemia. Para ela, o trabalho nesse período tem sido mais difícil, não só pela mudança na recepção do público, mas principalmente pela queda nos ganhos totais no fim do mês. Mesmo entre as pessoas que não se incomodam com a presença dos artistas, a contribuição caiu muito: “Por mais que as pessoas queiram te ajudar, elas não têm de onde tirar. Os dois reais que ela teria para te dar é o dinheiro para ela comprar o pão” — diz. Hoje, Alice arrecada um quarto do dinheiro que conseguia antes.

A dificuldade financeira também foi sentida por Júnior Sousa, morador de Ramos, 26 anos, que canta no metrô — principalmente nos trechos da Zona Sul, São Conrado e Jardim Oceânico. Assim como Alice, sentiu os maus olhares vindos do público, o que influenciou na contribuição: “a gente saía com 10 reais de casa para pagar a passagem e voltava com 20, o nosso ganho estava ridículo.” No entanto, com o relaxamento das restrições, “quando todo mundo foi percebendo que não tinha jeito, que as pessoas tinham que sair para trabalhar”, o olhar das pessoas nas ruas e nos vagões começou a mudar, e a contribuição melhorou um pouco. “Mas não tem nem como comparar com o que era antes” — conclui.

De acordo com Alice, enquanto a renda diminuiu durante a pandemia, a repressão só aumentou. Com a responsabilidade de zelar pelo distanciamento social entre os passageiros, a artista conta que “os guardas parecem implicar mais com os artistas, como se a gente não precisasse estar ali, como se a gente tivesse outra opção.” No mês de maio, estava trabalhando na estação da Central quando um rapaz pediu para tirar fotos dela tocando. “Pelo simples fato de o rapaz tirar minha foto na estação, apareceram quatro guardas da Supervia e dois PMs, me cercando e falando que era procedimento. Pode até ser procedimento, mas a gente é constrangido por isso.”

Rodrigo Novello, ator e malabarista de 20 anos, relata também as limitações impostas pelos novos protocolos de proteção individual. Além das dificuldades usuais da apresentação nos sinais de trânsito — como os carros passando, a rapidez dos sinais fechados, e a pouca valorização do público — agora a máscara facial cai constantemente com a movimentação do corpo e ainda dificulta a visão das mãos. Fora a insegurança de estar sempre em contato com muitas pessoas: “É o tempo todo uma nóia de estar pegando dinheiro de uma pessoa que pode estar contaminada. Botava dentro de um saco plástico e higienizava a mão a cada apresentação.”

Conflito histórico

Em tempos de pandemia, os artistas sentiram que, mais do que nunca, seu sustento não é visto como uma profissão. “O artista de rua historicamente é enxergado numa ambivalência. As pessoas não sabem se ele é trabalhador ou vagabundo, se é amador ou profissional, se aquilo é um hobby ou um trabalho” — analisa Flávia Magalhães, do grupo de pesquisa em Comunicação, Arte e Cidade, da UERJ. Para ela, as dificuldades enfrentadas hoje pelos artistas de rua são consequência de uma percepção da sociedade muito ligada à desconexão que o Estado tem com o setor: “Não conhece essa rede de produção cultural, não entende quem são esses atores, não sabe como eles atuam, não entendem esse tipo de manifestação. E a partir do momento que eles não compreendem, avaliam sempre por uma perspectiva moralista.”

“Faltaram políticas públicas para as artes públicas. Mas a gente não só não tem políticas públicas, como as que tem são repressivas.” É o que diz Amir Haddad, renomado diretor do grupo de teatro Tá na Rua, um dos grandes articuladores para a construção da Lei 5.429 de 2012, ou “Lei do artista de rua”. De autoria do vereador Reimont (PT), ela permite que os artistas se apresentem na rua sem autorização prévia do poder público. A Lei complementar 8120 — de autoria do deputado estadual André Ceciliano (PT) — que permitia a arte dentro do transporte público, no entanto, foi considerada inconstitucional em 2019, após uma ação movida pelo então deputado estadual Flávio Bolsonaro (Patriota), à época no PSL.

No entanto, para Amir, mesmo nas localidades contempladas pela Lei, “qualquer manifestação artística em qualquer esquina é enxergada como infração à ordem. Sempre vai chegar um policial, sempre vai encostar alguém sem falar qual é o problema, sempre vão pedir documento, nada vai ser estimulado. E o próprio cidadão também, desacostumado, vai ver o cara cantando ali e vai pensar: ‘quem é aquele maluco?’”

Políticas públicas na pandemia

Na pandemia, todo o setor cultural foi duramente atingido. É “o primeiro prejudicado e vai ser o último a retornar para a normalidade”, relembra Júnior. A Lei federal Aldir Blanc foi aprovada, justamente, com o intuito de auxiliar artistas e produtores culturais nesse momento de paralisação. Ficou por conta dos estados e municípios atuar na sua aplicação em três frentes: subsídios mensais voltados para a manutenção dos espaços artísticos e culturais, o financiamento de editais e a chamada Renda Emergencial aos Profissionais da Cultura, destinada às pessoas físicas que tivessem comprovação de atuação no setor cultural nos últimos dois anos. Nesse benefício, os contemplados não poderiam ter emprego formal ativo, deveriam ter renda familiar per capita de até meio salário-mínimo e não poderiam ter recebido o auxílio emergencial federal.

No dia primeiro de junho deste ano, o Congresso Nacional rejeitou os vetos do presidente Jair Bolsonaro ao PL 795/2021 de extensão da Lei Aldir Blanc . A intenção do Governo Federal era restringir a utilização dos recursos remanescentes da Lei apenas à captação e execução dos projetos culturais aprovados no ano passado, até dezembro de 2021. Com a derrubada dos vetos, fica liberada a plena utilização da verba para a continuidade da Lei, com a inclusão de novos beneficiários.

Há uma possibilidade de que, no entanto, a Lei não tenha atingido a parcela de artistas e produtores que estão envolvidos com a arte de rua. Alice afirma que a maioria desses atores não ficou sabendo da Lei e, entre os que souberam, não chegou “de uma forma clara e objetiva”. Além disso, “o processo de comprovação da realização do material que tem que ser entregue por conta dos editais e do auxílio é muito burocrático, são coisas que as pessoas ainda não têm noção de como fazer. Aí acaba que só quem tem acesso são as mesmas pessoas todos os anos.”

Para Flávia, o problema não é exclusividade da Aldir Blanc. “Sempre houve uma grande dificuldade para conseguir inserir os artistas de rua nos editais e benefícios da área de cultura” — diz. Um dos empecilhos apontados é que, muito frequentemente, os artistas de rua não têm MEI ou CNPJ, requisito de boa parte dos editais. Além disso, pode haver dificuldade em manter um registro formal de seu trabalho que, muitas vezes, acontece em condições hostis. Outro fator é que muitos desses trabalhadores não são moradores da cidade onde atuam. Assim, um artista que mora na Baixada não poderia se inscrever nos editais da capital, por exemplo.

Na Lei Aldir Blanc, muitos editais permitiam a inscrição por CPF. Só pela Secretaria Municipal de Cultura (SMC), foram publicados quatro editais, dos quais três eram voltados para pessoas físicas. De acordo com a assessoria da SMC, nessa decisão foram consideradas “as características dos indivíduos e grupos tradicionalmente excluídos do acesso ao fomento, que na maioria dos casos não são institucionalizados.” No caso da Renda Emergencial aos profissionais da cultura, o cadastro e a distribuição ficaram por conta da Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa — o que, a princípio, diminuiria o impacto da questão dos artistas que trabalham em municípios diferentes dos que trabalham.

“Se perdeu uma grande oportunidade de mapear esses atores através da Aldir Blanc. Onde eles estão? O que eles fazem? Em que condições?” — lamenta Flávia. Para a pesquisadora, qualquer política pública para a arte de rua deveria partir de um diálogo do Estado com esses trabalhadores. Afinal, não é um grupo homogêneo: entre os artistas há muitas opiniões diferentes sobre o grau de intervenção pública que desejam em seu trabalho. “Quando legaliza, abre brecha para um certo tipo de regulação muito ordenada, que não faz parte da dinâmica deles. Ao mesmo tempo, se eles só conseguem trabalhar nas brechas, diminui completamente as possibilidades de sustentabilidade financeira.”

Foi criada, na atual gestão da SMC, a Gerência de Cultura Urbana e Popular. A assessoria diz que sua criação foi pensada para articular, dialogar e fomentar as políticas públicas para esse segmento, “justamente por entender a importância do setor para a retomada cultural da cidade.”

Um outro olhar sobre a cidade

O diálogo com os artistas de rua, no entanto, poderia ser positivo para a elaboração de políticas públicas para toda a cidade, não só para o setor cultural. Para Rodrigo, se apresentar nos espaços públicos leva a uma visão muito mais ampla do funcionamento urbano: “a partir do momento que você começa a se apresentar na rua, você começa a ver ela de outra forma, como seu palco. Você vê a arquitetura e os movimentos da cidade com outros olhos.” A arte de rua possibilita ver os espaços públicos para além do momento da passagem, como um espaço que pertence e pode ser ocupado pela população da cidade — uma ideia fundamental para a elaboração de políticas efetivas.

“A arte projeta no espaço público a possibilidade de habitá-lo”, resume Flávia. Para a pesquisadora, essa visão é muito relevante, principalmente quando há um processo de esvaziamento das ruas em todo o Rio de Janeiro, onde cada vez mais impera uma narrativa sobre o perigo. “A rua como o lugar onde você pode perder, nunca ganhar. A rua como o lugar onde seu corpo pode ser violado. O lugar onde você pode morrer, de fato.” O impacto na segurança ainda é um fator que impulsiona a economia dos locais onde há arte de rua: “O lugar onde tem música é um lugar habitado. Onde tem maior circulação de pessoas, tem circulação de dinheiro” — conclui.

Não é à toa que, apesar de todas as dificuldades, a rua ainda é a solução de muitos artistas. Ozeias, 60 anos, começou a tocar no Largo do Machado em maio de 2021, em plena pandemia. O artista, que estava trabalhando com turismo há alguns anos, desistiu de esperar uma melhora no setor e voltou a se concentrar na carreira como músico. Em outro momento, já havia se apresentado em bares, mas agora, com todas as restrições sanitárias, a rua foi a saída. Para ele, a grande vantagem de se apresentar nos espaços públicos é que assim vai ao encontro de todas as classes, mesmo aquelas que normalmente não têm acesso aos eventos culturais. “A população precisa disso. Senão as pessoas menos favorecidas não conseguem receber, se alegrar, se informar. Porque a música também é informação, e quando tem uma mensagem que edifica, faz muito bem às pessoas.”

Além dos impactos positivos na segurança, na economia e na ampliação do acesso à arte e à cultura, Alice conta que seu trabalho no trem já teve impactos positivos na saúde mental de alguns passageiros. “Já aconteceu de uma pessoa falar comigo que estava querendo tirar a própria vida se jogando nos trilhos, mas que desistiu porque me ouviu cantando uma determinada música com uma mensagem que foi importante para ela.” Não só do público, a arte de rua tem um impacto positivo na saúde mental dos próprios artistas que, muitas vezes, acabam trabalhando em outras áreas para conseguir se sustentar. “Se você trabalha em outra área, mas com carteira assinada, você vai ter até mais segurança, só que estaria dedicando todo aquele tempo a seu patrão, sem condizer em nada com a sua vida pessoal, com os seus sonhos. Você vai trabalhar para realizar os sonhos de outra pessoa, não os seus” — diz a cantora.

A arte de rua não se resume apenas ao local onde é realizada, portanto. É um trabalho que, de diferentes formas, impacta a experiência urbana de cada segmento social. Nesse sentido é que Amir Haddad adota o termo “arte pública”: é a arte que não se vende, não se compra, se realiza no encontro do artista com o cidadão em todo e qualquer lugar, sem discriminação de nenhuma espécie. “Aí pode ter só 50 pessoas em volta de você, mas a cidade inteira está ali representada. Tem gente de todas as origens sociais, de todas as cores, de todos os sexos. Se não estão ali diretamente, estão ali potencialmente representados.” Para o diretor, “a arte é a maior auxiliar da construção de uma ordem pública de qualidade.”

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