“A arte é a maior auxiliar da construção de uma ordem pública de qualidade”

Há mais de 40 anos dirigindo teatro de rua, Amir Haddad fala sobre a relação da cidade com a arte pública

Julia Filgueiras
6 min readJun 21, 2021

--

Na década de 1980, o grupo de teatro Tá na Rua surgia como uma forma de investigação artística dos espaços abertos. Desde então, o diretor Amir Haddad, que já era reconhecido por seu trabalho nos teatros fechados da classe média, se tornou um grande nome na defesa da arte pública. Ano passado, com a chegada da pandemia do coronavírus, o grupo completou quarenta anos em quarentena. Outros artistas de rua da cidade, no entanto, continuaram ocupando os espaços públicos como forma de sustento, enfrentando todas as adversidades causadas pela doença e pela falta de políticas que assegurem seu trabalho. De sua casa, aos 83 anos, Amir fala sobre a relação da cidade com esses artistas.

Por que você costuma usar “arte pública”, em vez de “arte de rua”? A escolha desse termo tem um sentido específico?

O conceito de arte pública era inexistente quando eu comecei a fazer teatro nos espaços abertos, depois de muitos anos eu fui precisar definir o que era aquilo que eu estava fazendo. Aí que eu comecei a perceber que a arte é obra pública feita por particular — mas que a gente vivia como obra privada feita por particular, para ser oferecida para particular. Tem muita arte de rua que não é pública, você pode estar simplesmente levando o teatro que você faz nas salas fechadas para a rua. Essa coisa que começou a ficar muito clara: a atividade nos espaços públicos não tem a mesma característica da atividade nos espaços fechados. Nem poderia ter, pelas próprias condições físicas, mas também pela composição da plateia que vai te assistir, que é uma coisa muito importante. Eu sempre fiz espetáculos nos teatros da Zona Sul, do Centro, nos teatros que a classe média frequenta. E com isso, eu sempre fiz espetáculos para uma classe social absolutamente homogênea: é tão previsível o comportamento deles que a gente pode até tentar definir que todos estão usando roupas íntimas iguais (risos). A grande surpresa é quando você vai para o meio da rua, e dá de cara com uma plateia absolutamente diversificada. Aí pode ter só 50 pessoas em volta de você, mas a cidade inteira está ali representada. Tem gente de todas as origens sociais, de todas as cores, de todos os sexos — se não estão ali diretamente, estão ali potencialmente representados.

E você acha que pode existir cidade sem arte pública?

Eu acho que a maior parte delas não tem arte pública porque ninguém a exerce, mas ela é latente na vida de toda e qualquer cidade. Mas, como a burguesia é muito pragmática, organizada, ela trabalha nas especializações, ela dita um lugar para cada coisa. Tem lugar “certo” para tudo, inclusive a arte — e o que se passa fora dos lugares não é reconhecido. Por isso que as cidades ficam sem arte pública, porque as pessoas esperam que o lugar da arte seja nos teatros, nas casas de show, essas coisas. É esse rompimento que eu fiz: perceber a latente vida cultural que uma cidade tem sufocada pelo movimento de pedestres que passam pelas suas praças e pelas suas ruas. Eu fui potencializar essa capacidade expressiva que uma cidade tem, e cheguei a fazer isso muito adiantadamente. Mas tudo foi por água abaixo na gestão do prefeito anterior, que desestimulou, perseguiu e caçou nosso trabalho, entendendo a arte pública como desordem pública. Pelo contrário, a arte é a maior auxiliar da construção de uma ordem pública de qualidade, entende? Melhor do que a polícia. Eu acho que a arte organiza o mundo. Eu sonho com uma cidade toda manifestada artisticamente, já cheguei a fazer essa utopia na minha cabeça e, se tivessem me dado chance, eu teria feito o Rio de Janeiro muito mais movido pela arte pública do que ele é.

O que faltou para chegar na sua utopia?

Faltou políticas públicas para as artes públicas. O Rio de Janeiro tem essa vocação. É uma cidade aberta, uma cidade de céu, de horizonte, de etnia variada… tem tudo para ser diferenciada. Mas a gente não só não tem políticas públicas, como as políticas públicas que tem são repressivas. Qualquer manifestação artística em qualquer esquina é enxergada como infração à ordem. Sempre vai chegar um policial, sempre vai encostar alguém sem falar qual é o problema, sempre vão pedir documento, nada vai ser estimulado. E o próprio cidadão também, desacostumado, vai ver o cara cantando ali e vai pensar: “Quem é aquele maluco?” (risos). A gente vai ter que viver o fim dessa civilização para ver nascer uma outra com o sentimento público maior.

Em entrevistas anteriores com alguns artistas de rua, ouvi relatos do sentimento de abandono. Não só por políticas públicas consideradas insuficientes, mas também por esse estranhamento por parte do público, que às vezes não considera sua arte como trabalho. De onde você acha que vem esse julgamento?

Existe na cabeça das pessoas a ideia de que se você está tocando na rua, é porque você não é bom, por isso não arranjou um lugar. Mas muitos dos artistas que estão tocando na rua estão lá porque não têm escolha, não conseguiram arranjar um lugar para se apresentar porque os lugares são muito seletivos. Eu faço teatro de rua porque eu escolhi fazer na rua, eu sei a diferença de fazer o teatro dos espaços fechados e o teatro dos espaços abertos, eu sei tudo que me traz de novidades. Mas isso não é comum, muitos estão ali porque não têm para onde ir. E o público muito enxerga estes artistas como vagabundos.

O Tá na Rua teve um papel importante na construção da Lei do Artista de Rua, em 2012. Hoje, a Lei é essencial para muitos artistas que vieram depois, podendo contar com a rua como um espaço mais regular de expressão artística e obtenção de renda. A arte de rua sempre existiu, mas o que você acha que mudou na cena depois da regulamentação?

Acho que o simples fato de você ir para a rua com a Lei no bolso já te dá uma segurança que você não tinha antes. Antes você podia perder seu material de trabalho, podia ser levado para delegacia, podia ser tratado como vagabundo. Com a Lei, logo depois que ela foi promulgada, aconteceu muitas vezes de o artista estar se apresentando e chegar a polícia. Aí, o cara falava: “Mas e a lei?”. O polícia dizia: “Que lei?”, e o cara lascava a lei na cara dele. Tivemos o prazer de fazer isso várias vezes, era uma coisa maravilhosa (risos). Hoje ela já está no sangue dos responsáveis pela ordem pública, eles sabem que existe uma lei que autoriza o cidadão a se manifestar publicamente.

E como você imagina que vai ser a arte nas ruas depois que a pandemia passar?

Veja, eu não estou fazendo nenhuma profecia, mas o meu desejo é ocupar absolutamente o espaço público. Eu, os meus atores e todos que trabalharam comigo ao longo desses 40 anos vamos nos convocar para uma grande manifestação de reocupação das ruas e praças. Eu acho que nós, artistas públicos, vamos ser muito mais entendidos e aceitos pela população, depois que a população também perdeu acesso a esse espaço. Então, quando nós voltamos às praças, eu acho que eles saberão nos receber de braços abertos. E nós estaremos nos entregando a esse delírio, a essa vertigem do ar livre — o vento, o sol na cara, a natureza da cidade, tudo isso que é tão maravilhoso e que a gente se viu privado. Eu acho que a volta ao espaço público vai ser diferente do que era antes e nós todos vamos repensar. Qual será a nova normalidade? A gente não sabe, eu não tenho a menor ideia.

--

--