“A arte conta a História junto com os livros”

Flexibilizado pela reforma, precarização é marca do ensino de artes no Novo Ensino Médio

Julia Filgueiras
9 min readMar 15, 2023

Hélio Xavier é professor de artes no Rio de Janeiro. Dá aula em quatro escolas particulares no subúrbio da capital: uma perto de sua casa em Vaz Lobo, outra em Campo Grande e mais duas na Freguesia. Quando chamado para entrevista, avisou de antemão que já não tem tanta propriedade para falar sobre ensino médio quanto tinha alguns anos atrás, pois passou a ministrar aulas somente para o fundamental a partir de 2017. “Parei (me tiraram rs)”, é o que ele diz por mensagem. Hélio, assim como muitos outros colegas de profissão, parou de dar aula para o Ensino Médio nesse ano porque a escola onde trabalhava deixou de ofertar aulas de arte para alunos desse segmento.

Em setembro de 2016, o governo do então presidente Michel Temer (PMDB) apresentou uma Medida Provisória que alterava o ensino médio no País. Entre as inúmeras mudanças, o governo fez propostas que flexibilizam a obrigatoriedade das aulas de artes. A Medida foi convertida na Lei nº 13.415, de 2017, e o ano de 2022 foi estabelecido como a data de início de aplicação das mudanças em sala de aula. Na nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o novo modelo é defendido com uma forma de “tampar o gargalo na educação”. O documento expõe em suas primeiras linhas: para garantir a permanência e o aprendizado, a escola precisa atender “às demandas e aspirações presentes e futuras” dos estudantes.

A grande novidade é que agora o estudante secundarista pode escolher o que vai aprender, em pelo menos 1.200 das 3.000 horas de seu ensino médio, de acordo com seus talentos e interesses. Pelo menos no papel. Isso porque o Novo Ensino Médio conta com os “Itinerários Formativos”, através dos quais o aluno poderia se aprofundar na área de sua escolha, incluindo — além das áreas de linguagens, humanas, matemática e ciências naturais — um itinerário de formação técnica e profissional. As escolas, no entanto, não precisam ofertar itinerários para todas as áreas — podem montar currículos de acordo com o interesse do corpo discente, com a disponibilidade de professores e com a infraestrutura de cada espaço. No fim, o estudante pode escolher o que sua escola puder ofertar.

Luiza Tinoco estuda em uma das mais caras e tradicionais escolas da Zona Sul carioca. Mesmo com toda estrutura, não está achando que o Novo Ensino Médio de fato proporciona um aprofundamento na área de sua escolha. Sua escola ainda não oferece itinerários de todas as áreas, tampouco um de formação técnica e profissional. Entre os itinerários das áreas de humanas e de exatas oferecidos pelo colégio, Luiza escolheu o de humanas. Toda semana, ela estuda as disciplinas comuns de ensino médio, mas também tem aula de aprofundamento em história, espanhol, história da arte e teatro. Por mais que goste dos assuntos, ela não acha que melhorou o aprendizado, pelo contrário — “ficou meio que um tempo sem nada”, ela diz. Tinha aula, claro. Mas para ela eram aulas fracas, que ninguém se importava muito nem considerava importante.

Além dos itinerários, a Reforma institui que as únicas disciplinas que devem ser obrigatoriamente ofertadas nos três anos de Ensino Médio são língua portuguesa e matemática. O estudo da língua inglesa também é garantido por lei, ainda que não necessariamente em todas as séries. As demais matérias devem ser ensinadas nas horas distribuídas por suas áreas, e é na de linguagens onde se encontram as artes. Sobre elas, a lei estabelece: “A Base Nacional Comum Curricular referente ao ensino médio incluirá obrigatoriamente estudos e práticas de educação física, arte, sociologia e filosofia”. Estudos e práticas, não ensino. Assim, não há especificidade das disciplinas que devem ser ofertadas em cada uma das grandes áreas, embora elas sejam, de alguma forma, obrigatórias.

Se uma escola optar por oferecer, por exemplo, uma disciplina de ciências humanas sem ensinar filosofia, é permitido. Assim como é permitido ofertar uma disciplina de ciências da natureza sem ensinar um conceito de química sequer e, como é de se esperar, ofertar uma disciplina de linguagens sem dar aulas de arte em nenhum momento. Na escola de Luiza, os alunos continuaram a ter aula obrigatória de sociologia, filosofia, história e geografia, além de educação física. Também têm dois tempos semanais de religião, e outro de “direito e empreendedorismo”, matéria criada nessa transição para o Novo Ensino Médio. A única aula que deixou de ser obrigatória para todos é a de arte.

Em Moção de Repúdio à implementação do novo Ensino Médio no Rio de Janeiro, o Coletivo Arte Mudança-Já diz que a lei deixa espaço para a interpretação de que esses estudos e práticas podem ser diluídos nos conteúdos de demais áreas já formalizadas como disciplinas. “Assim, deixa de existir a obrigatoriedade legal de oferta dessas disciplinas para haver uma obrigatoriedade de estudos e práticas serem incluídos na BNCC”, explicam em nota.

Interpretações como essa justificam cenários como o vivido por Daniela, professora da rede estadual há 17 anos em uma escola em Magé, na Baixada Fluminense. Lá, e nas escolas estaduais como um todo, as aulas de artes no ensino médio são só no 2º ano. Como o Novo Ensino Médio será implementado gradualmente, hoje as mudanças são só para a primeira série. Mas, ano que vem, “a primeira coisa que vai acontecer é a saída da arte do currículo”, ela afirma. Por enquanto, Daniela sabe que vai continuar dando aulas para o programa de Educação de Jovens e Adultos, que tem aulas separadas para as quais a Reforma não se aplica. Essa é a única certeza que tem.

Disputa histórica

Antes de se tornar professora e se mudar para Magé, Daniela estudou em um tradicional colégio particular no bairro do Catete. Na sua época de ensino médio, o modelo era aquele instaurado pela Reforma Educacional de 1971, que determinava o ensino profissional obrigatório nas escolas de 2º grau. Ela não se lembra bem, mas diz ter feito técnico em economia, embora não tenha tido nenhuma aula sobre a área. “Na verdade, a escola preparava mesmo para arrebentar no vestibular, então tinha aula de tudo”, lembra.

Já no colégio estadual a poucos metros dali, os colegas de Daniela viviam outro cenário. Lá, um pouco como é hoje no Novo Ensino Médio, os cursos técnicos oferecidos tinham aulas de matérias mais específicas para cada área escolhida. Um aluno do técnico em administração, por exemplo, poderia ter aula de história mas não ter de geografia, de matemática mas não ter de biologia — e por aí vai. Quando fosse prestar o vestibular, o estudante não necessariamente teria estudado todas as matérias exigidas, e por isso tinha mais dificuldades para ingressar no ensino superior do que alunos de escolas particulares.

Na mesma Reforma de 1971, a Educação Artística passou a ser obrigatória no ensino formal. Sob uma perspectiva tecnicista, as aulas poderiam ser ministradas por profissionais de todas as áreas, inclusive matemática. Daniela lembra de ter estudado desenho geométrico na aula de artes plásticas e que, por mais que hoje trabalhe com isso, na época “achava um saco, achava aula de arte um horror”.

Para a professora, aos poucos esse modelo de educação foi se mostrando cada vez mais obsoleto. Quando ela já estudava na Unirio e era coordenadora do Movimento Nacional dos Estudantes de Arte, Daniela foi muito presente na construção da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), reformulada em 1996. Nesse período, ela conta, a luta fundamental do movimento era pela obrigatoriedade do ensino de artes na educação básica. Foram atos e performances por toda a cidade, branquinhas de abaixo-assinados espalhadas pela Cinelândia e algumas notinhas em jornais locais. Foram vitoriosos, apesar das flexibilizações. Até a reforma de 2017, a LDB representou uma grande conquista.

“A realidade por si só não dá conta”

Ana Júlia Marson é estudante de desenho industrial na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Estudou em algumas escolas ao longo da vida, com infraestruturas bem diferentes. O ensino médio ela cursou em uma escola-cursinho na Vila da Penha, onde tinha aulas expositivas de História da Arte até o terceiro ano — quando teve uma ou duas aulas de arte o ano inteiro no estilo resumão para o ENEM. Ela considera que era péssima no colégio: tinha muitas notas baixas, quase repetiu de ano várias vezes e ficava de prova final. Mesmo que estudasse muito e soubesse toda a matéria, ela tinha muita dificuldade de se expressar por meio de uma prova, ter confiança de afirmar o que sabia. Para ela, as aulas de arte eram libertadoras. “Era a única coisa que eu me sentia bem fazendo na escola. Ninguém me criticava, e eu também não me criticava por estar fazendo aquilo, do jeito certo ou do jeito errado.”

Os professores que mais marcaram a vida de Ana Júlia foram os de arte, ela sabe o nome de cada um que passou por sua trajetória escolar. “Eu não lembro o nome de professor de matemática, de química, de física… mas eu lembro de todos os professores de artes desde lá do primário”, confessa. Para a estudante, isso é porque só nas aulas desses professores que ela podia falar o que desse na telha e ser criativa de verdade. “Eu acho isso muito importante pro crescimento individual de cada aluno, porque cada um tem uma percepção diferente de um quadro, de um livro, de uma canção… a gente poder respirar e entender um pouco a arte é muito importante”, conclui.

Sobre a importância e o impacto que o ensino de artes tem na vida dos alunos, a professora Daniela relembra as contribuições de Ana Mae Barbosa, um dos maiores nomes da arte-educação brasileira. Em sua Abordagem Triangular, o método para uma aprendizagem mais significativa se baseia na contextualização histórica, na apreciação e no fazer artístico. Nas palavras de Daniela, “a arte conta a História junto com os livros”, e é aprendendo a apreciar que o aluno consegue dialogar com essa história, refletir e criar por conta própria. Para a professora, é um espaço fundamental não só para quem quer ser artista, mas para todo mundo que precisa ser criativo. “É um espaço de estímulo ao pensamento reflexivo e criativo, essencial para a transformação social e para o avanço da humanidade”, ela explica.

Hélio, por outro lado, já foi muito questionado por alunos sobre a utilidade da disciplina que ministra. “Eles têm que entender que a realidade por si só não dá conta. Mesmo quando não tinha nada, as pessoas já precisavam se expressar através das paredes”, é o que costuma responder. Uma cultura precisa se manifestar, e é por isso mesmo que ele considera as artes tão importantes. Para Hélio, quanto mais culturas e referências ele puder transmitir para seu alunos, melhor. Até para ensiná-los a respeitá-las.

Outros caminhos

O desejo por mudança é comum entre muito professores e alunos quando se trata não só de ensino médio, mas do modelo educacional que marca todos os níveis de formação. É com base nesse sentimento que a propaganda da reforma se fixa nos corações e mentes de alguns brasileiros. O Novo Ensino Médio é uma promessa de mais liberdade. O problema é que, da forma como se estabeleceu, o modelo não garante a oferta de novos conteúdos, pelo contrário, flexibiliza a obrigatoriedade de muitas matérias. Para Daniela, a reforma não foi pensada para trazer renovação para educação, e sim para enxugar a máquina, reduzir gastos. Se faltam professores, por exemplo, o estado não precisa mais promover concursos públicos, as escolas podem simplesmente tirar aquela matéria do currículo. “Em vez de fazer concurso, eles constroem métodos para esvaziar de sentido a educação, precarizar mais o aluno filho da classe trabalhadora, aprofundar o abismo social e não oxigenar, não construir o novo de verdade” — Daniela diz.

Nas escolas particulares o problema também não foi resolvido. A questão não é só poder escolher que área seguir, mas sentir que o que se aprende na escola tem conexão com a realidade. Luiza, a aluna do tradicional colégio na Zona Sul, acha que o ensino médio precisa focar mais na orientação profissional dos alunos. Para ela, as escolas precisam introduzir diversas áreas profissionais em sala de aula, de forma a aproximar os estudantes de cada espaço acadêmico e mercado de trabalho. Luana Tenius, estudante do 1º ano de outra escola particular, concorda que o ensino médio deveria preparar mais para a vida adulta — mas não só no campo profissional. Ela sente falta de disciplinas práticas como educação financeira e sexual, defesa pessoal e primeiros socorros, por exemplo.

Como professor de artes, Hélio também acha que a conexão com a prática além dos muros da escola é essencial. Poder levar os alunos para mais “banhos de cultura” em lugares históricos, por exemplo, é das coisas que ele mais sente falta. Ou até trazer figuras importantes para dentro dos colégios com menos burocracia. Para o professor, outro problema é a inflexibilidade nas grades horárias, que muitas vezes corta uma aula justamente quando começa a gerar discussão. “Às vezes um conteúdo tá começando a ser aprofundado e já tem outro professor batendo na porta” — explica.

“Ninguém é contra que se construa e se pense”, diz Daniela. Mas, para a professora, não tem que ter fórmula pronta para elaborar um novo modelo de educação, “porque o conhecimento é vivo e o debate é que tem que ser a premissa.” Se questões são detectadas, devem ser construídos processos de debates feitos no chão da escola, com a presença de alunos, professores e movimentos sociais — e que, de preferência, não sejam puxados por grupos privatistas, como defende a professora. Na verdade, Daniela acha que muitos desses necessários debates já aconteceram no movimento de ocupação das escolas em 2016. Ela conta que, quando a escola onde dá aula foi ocupada, os estudantes elaboraram uma lista dos professores que podiam e não podiam entrar e montaram um currículo com as aulas que queriam ter. Também chamaram professores de outras escolas ocupadas para dar aula, apresentaram projetos, organizaram um espetáculo de teatro. Para Daniela, foi uma experiência muito interessante, mas que simplesmente não foi aproveitada.

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